domingo, 14 de setembro de 2008

Um Estilo Centenário

Autor de nove romances, quatro livros de poesia, sete contos, 10 peças de teatro, além de críticas, traduções e crônicas, Machado de Assis foi o crítico da sociedade fútil, da falsidade dissimulada, da retórica vazia, mas era consciente de que é impossível fazer o relato completo da realidade, pois o sentido das coisas não é estável, mas escorreito; não é sólido, mas gelatinoso.
Sinal de seu encanto contínuo, já se falou tanto de Machado que até as interpretações consagradas sobre sua obra conquistaram o benefício da dúvida; ou, pelo menos, da relativização. Há quem ache agora um mito a ideia de um autor de duas faces (o romântico até ingênuo que guina a carreira na maturidade, com Memórias Póstumas de Brás Cubas), em favor da apreensão orgânica de seus livros, fruto que seria de uma mesma sintonia intelectual. Há quem ache irrelevante o “enigma de Capitu”, de ser ela ou não a traidora, que o projeto de Dom Casmurro não é só a incerteza sobre a mulher de Bentinho ou sobre o narrador Bentinho, mas sobre a própria condição do narrador.
Para muitos, Machado teria desenvolvido sua escrita dentro de um marco de ironia estilística, a que José Guilherme Merquior deu fama numa conferência (Machado em perspectiva), na Faculdade de Letras de UFRJ, em 1989. Merquior chama a atenção para a originalidade de Enylton de Sá Rego, o primeiro a vincular Machado à tradição menipeia.
A sátira menipeia traz uma situação fantasiosa, mas seu registro se dá no ponderado, no distanciamento e nos elementos de realismo que tornariam uma situação plausível. Memórias Póstumas de Brás Cubas é a encarnação mais explicita dessa tradição. Cantar a tragédia com gravidade seria jogar no mesmo terreno da melancolia, do mundo de certezas opacas e unívocas. Mas parodiar a morte é rir da própria autopiedade. E Machado o fez embaralhando os gêneros, abusando da ironia e explorando o absurdo quando parecia usar técnicas realistas. Seu humor é gráfico, brinca com associações de ideias, desenha na imaginação do leitor, não vem da piada explicita. Daí seu esmero retórico.

Retórica Machadiana
Como Machado usava sua hoje reverenciada sutileza? A favor de um olhar compreensivo das fraquezas humanas. No conto Um Homem Célebre (Várias Histórias), o pianista Pestana sonha com a imortalidade que nunca terá, a mesma das criações de Beethoven ou Mozart. Tomara gosto pela música na infância com um padre, que as más línguas garantiam ser seu pai biólogo. Mas, engolido pelo horizonte limitado de seu tempo, Pestana ganha fama como compositor de polcas. Esse é o conflito nuclear da narrativa; por isso, Machado logo explorar a filiação de Pestana.
“Compusera alguns motetes o padre, era doudo por música, sacra ou profana, cujo gosto incutiu no moço, ou também lhe transmitiu no sangue, se é que tinham razão as bocas vadias, cousa de que se não ocupa a minha história, como ides ver.”
Em seguida, o narrador centra-se no principal: o cotidiano de um músico de ambições clássicas que, popular mas vencido pelas ambições de ocasião, morre sem compor nada de erudito (“bem com os homens, mal consigo mesmo”).
Até ali o assunto da paternidade de Pestana esteve encerrado, mas Machado, de relance, deixou lá pela metade do conto sua marca. Enquanto narra o pianista num momento entusiasmado da composição de uma polca, menciona de passagem:
“Gosto dela; na composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da evocação”.
E nos dá, discretamente, com piscadela, a confirmação dos boatos maldosos, que, na superfície, garantira evitar.


Elegância Retórica
Comportamentos insólitos são disfarçados em cenários a que estamos familiarizados. Machado incorporou alusões que dão, à superfície das situações que descrevia, a força de comentário crítico. Seu narrador é irônico, está em permanente dialogo com o leitor. Seu texto quer cumplicidade, busca mudar o gosto de um público que não era, em seu tempo, dos mais experimentados.
O processo de forjar o leitor crítico implicou para Machado chamar a atenção para o funcionamento de seu próprio texto. Em Memórias Póstumas ele consegue até fazer transições narrativas manipulando uma digressão (sobre o método).
“E vejam agora com que destreza, com que fina arte faço eu a maior transição deste livro. Vejam: o meu delírio como meu grão-pescado da juventude; não há nascimento sem meninice; meninice supõe nascimento; e eis aqui como chegamos nós, sem esforço, ao dia 20 de Outubro de 1085, em que nasci. Viram? Nenhuma juntura aparente, nada que divirta a atenção pausada do leitor: nada. De modo que o livro fica assim com todas as vantagens do método, sem a rigidez do método. Na verdade, era tempo. Que isto de método, sendo, como é, uma coisa indispensável, todavia é melhor tê-lo sem gravata nem suspensórios, mas um pouco à fresca e à solta, como quem não se lhe dá da vizinha fronteira, nem do inspetor do quarteirão.”
O mundo é tecido complexo, de poucas, falsas ou meias verdades. Na crônica O Punhal de Martinha, publicada no jornal A Semana (1894), esse limite é explicado:
“Não quero mal às ficções, amo-as, acredito nelas, acho-as preferíveis à realidade; nem por isso deixo de filosofar sobre o destino das coisas tangíveis em comparação com as imagináveis. Grande sabedoria é inventar um pássaro sem asas, descrevê-lo, fazê-lo ver a todos, e acabar acreditando que não há pássaros com asas”.
A realidade de um pássaro sem asas é uma metáfora machadiana típica. A vida não cabe na arte. A dimensão do discurso cria a realidade própria, que então dita os nossos passos. Discurso, convenção social, arte, política, qualquer signo, enfim, cria o próprio objeto e ele se reitera no tempo, se amplifica no espaço, vira tradição, impõe comportamentos como se fossem a própria realidade material do mundo.
O mundo exterior à linguagem, parece dizer Machado, pesa menos que os efeitos de real provocados pelo imaginário humano. O pássaro sem asas é uma imagem irônica da convenção do mundo em discurso, única maneira de realmente representá-lo. Machado reflete sobre a cultura, não a natureza. Descrê de que há essências, vê o mundo como uma construção. E faz isso como quem pisca de lado.

Edição de texto originalmente publicado em Língua Portuguesa 29, abril de 2008

Um comentário:

Biia :* disse...

Eu amooooooooo machado de assis :X